quarta-feira, 15 de novembro de 2017

MENINA DE RUA




MENINA DE RUA
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A mídia e o carisma de apresentadoras de programas de televisão propagaram e multiplicaram nomes pelos quadrantes do Brasil e romperam fronteiras: Nika é uma delas. Quem não a conhece? Passou a ser apelido de loiras e até loiros de todas as idades, pela popularidade e aceitação dessa imagem de nosso tempo. Hoje, eu vi uma Nika. Como tantas outras que se apresentam no cotidiano dos vídeos, anúncios e artigos de consumo, ela também se destacava, mesmo sem ser produzida, e me polarizou a atenção por sua presença no grupo que se formava à saída do moderno supermercado.
Em meio aos adolescentes e quase adultos, mendigos e maltrapilhos, era a única menina. Pés descalços e muito sujos, cabelos loiros, desuniformes e embaraçados, higiene pessoal comprometida e prematuros vícios de postura; sua face direita estampava uma tênue mancha escura e porosa – talvez alguma cicatriz em evolução, talvez alguma deficiência na pigmentação da pele, talvez alguma sujeira momentânea… não sei…
Desnutrida e de gestos lerdos, apesar da juventude, mais parecia uma boneca de pano, deixada ao chuvisco da tarde, esquecida e molhada.
Difícil avaliar sua idade, diante dos rigores que a vida lhe reservou; possivelmente não mais que a faixa dos anos de fantasia que alentam e fazem sonhar as mais empolgadas debutantes.
Seu nome de batismo adormeceu no passado, se é que teve a graça desse sacramento ou um registro em cartório.
Agora é simplesmente Nika, só isso.
Como se fosse um estilizado cachimbo da paz, uma garrafa de cachaça peregrinava pelo grupo de boca em boca. Uma cena de estarrecer! Do gole que lhe foi oferecido com o sabor híbrido e ardente do gargalo, ela sorveu um trago sem contrair a face, deixando escorrer as teimosas gotas pelo canto da boca e alguns respingos sobre o surrado vestido que um dia foi azul.
Olhei-a atormentado e surpreso, pelo automatismo de seu gesto, e nada disse; sequer transformei em palavras minhas idéias confusas. Ainda assim, ela me olhou sorrateira e respondeu sonora e incisiva à silenciosa pergunta que guardei no pensamento:”É melhor beber do que roubar!”
Embaralhei os gestos e palavras de sua frase espontânea, buscando uma composição para lhes descobrir lógica ou incoerência, ignorância ou sabedoria, protesto ou desabafo…
Seu olhar disse tudo e me trouxe uma verdade clara e lamentável. Hoje, eu vi uma Nika!
Adolescente sem rumo na calçada.
Sem postura, sem força de opinião.
Podia ser a minha filha.
Ou a sua.
Filha da sociedade em desunião.
Herdeira do amor pelo nada.
Os passantes nada sabem do seu ontem.
Presumem as sombras do seu amanhã.
Quanta história você já tem para contar, lembrar, esquecer!
Quanta queixa ecoa no vazio de todo dia e toda noite!
E quantos riscos, maldades e agressões você teve que enfrentar para sobreviver, caminhando pelas sendas imprevisíveis do perigo!
Que pena, amiguinha sem nome; sequer sabemos se ainda é menina, ou se a brutalidade dos homens já foi impiedosa com a sua pureza!
Que pena que a rua lhe adotou!
E nenhum de nós lhe estendeu a mão, para impedir a sua caminhada para o abismo!
Afinal, quem é mais pecador?
Aquele que não recebe ou aquele que não doa?
Quem é?
Quem somos?
Somos todos culpados.
Todos nós!
Que Deus lhe proteja Nika!
E que nos perdoe também!
Paulo de la Peña  (Livro: Cidade Viva)

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