Joelma abre sua história com a violência doméstica: "Passei a temer pelos meus filhos"
O Brasil inteiro conhece a vocalista da Banda Calypso, uma cantora paraense de voz eloquente que dança em cima de saltos altíssimos jogando os cabelos com energia. Aos 44 anos, no entanto, Joelma da Silva Mendes apresenta a Marie Claire sua versão pouco conhecida, marcada por um drama comum: a violência doméstica
violência doméstica no Brasil tem, entre suas marcas, algo identificado
como transmissão geracional. O que significa que filhas de mulheres agredidas
têm mais chances de repetir o sofrimento das mães. A história de Joelma ajuda a
endossar tal característica. Assim como a mãe, Maria de Nazaré, ela é uma sobrevivente
da violência de gênero. O agressor, no seu caso, foi Cledivan Almeida Farias.
Ex-marido, pai de Yasmin – hoje com 14 anos, sua terceira filha –, e
ex-parceiro musical. Popularmente conhecido como Chimbinha. O mesmo guitarrista
com quem formou a Banda Calypso, no ano 2000. Juntos, venderam mais de 22
milhões de discos na atração paraense de maior sucesso da indústria da música.
Segundo o Datafolha, em 2007 a banda Calypso foi, ao lado da dupla Zezé Di
Camargo & Luciano, a mais ouvida no país.
Nos palcos, uma parceria brilhante.
Atrás deles, um marido que sob o efeito do álcool perdia o controle e
descontava suas frustrações na companheira. “Ele reclamava que
profissionalmente me respeitavam mais do que ele. Isso o deixava irado”, conta.
Na primeira agressão, dois anos depois que se conheceram, ela passou três dias
trancada em um quarto de hotel. “Sentiria muita vergonha se vissem meu rosto
coberto por hematomas.”
Nesta entrevista, a
cantora abre os detalhes de sua história com a violência doméstica. Um mal que
atravessou a maior parte de seus dias desde a infância, mas que enfim, ela
garante, teve trégua com o término de seu casamento, em 2015, quando conseguiu
na Justiça o cumprimento de uma medida protetiva contra Chimbinha, fazendo com
que ele não pudesse mais se aproximar fisicamente dela. “O medo coloca uma
barreira na sua frente. E muitas vezes te prende na violência. Acontece que eu
precisava ser feliz. Precisava escolher um lado. Escolhi a mim.”
Marie Claire Quando e como conheceu o Chimbinha?
Joelma da Silva Mendes Tinha uns 23 anos. Já cantava na Banda
Fazendo Arte, onde comecei a carreira, aos 19. Os amigos dele eram meus amigos,
mas a gente não se conhecia. Até pensava que ele era um cara mais velho, que
tinha um 40 e poucos anos. Porque quando as pessoas tocavam no nome dele, dava
essa impressão. Ele era um músico conhecido no Pará. Gravava com vários
artistas. Daí um desses amigos nos apresentou.
MC E se apaixonou
logo de cara?
JSM Não [ri]. Não. Ele começou a fazer meu CD solo que
virou o da Banda Calypso. Então a gente ficou muito tempo planejando aquele
trabalho. Foi ali que nos apaixonamos. Depois, foram 18 anos trabalhando juntos
e 18 de casados.
MC Como
começaram as agressões?
JSM Em dois anos de relação [2000]. Ele me bateu no
rosto e fiquei com o olho inchado. Não sei te dizer nem porquê aquilo
aconteceu. Na mesma hora falei que não queria mais. Me tranquei num quarto de
hotel em Belém e fiquei três dias sem sair. Eu estava com medo e teria muita
vergonha se vissem meu rosto coberto por hematomas.
MC Vocês já tinham
filhos?
JSM Eu já tinha Natalia e Yago, de outros relacionamentos. Yago era
criança na época, tinha uns 4 ou 5 anos [Natalia, na época com 12 anos,
é fruto de uma relação anterior de Joelma, com o motorista Luiz Alberto da Gana
Sarraff]. Mais tarde eu e ele tivemos Yasmin. Nossa única filha.
MC O que te fez
sair do quarto?
JSM Ele prometeu que nunca mais faria aquilo. Que se eu desse uma
chance, provaria. Era o que ele sempre dizia: que não repetiria a agressão.
Parecia mesmo arrependido. Acreditei.
MC Ele
cumpriu?
JSM Não. Aconteceu de novo, dois anos depois. Naquela tarde ele já
estava bebendo havia uns dois dias, virado. Pedi pra alguém avisar que estava
passando do limite. E essa pessoa foi chamá-lo. Estávamos numa casa em Recife,
que tinha um segundo andar com uma varanda sem proteção, e lá embaixo havia um
muro com umas armações de ferro. Ele veio transtornado porque eu tinha mandado
chamá-lo e começou a bater a própria cabeça na parede. As pessoas escutaram e
pensaram que ele estava batendo a minha cabeça na parede. Uma pessoa dizia pra
outra: poxa, eu queria ir lá, mas estou com medo. Até que um cantor da banda
foi. Quando ele chegou, [Chimbinha] pegou o meu cabelo, saiu
me arrastando e ia me jogar lá embaixo, nos ferros. O cantor o impediu. Não sei
o que aconteceria comigo. Se perderia minha vida, se ficaria aleijada.
Não sei o que
aconteceria comigo. Se perderia minha vida, se ficaria aleijada.
MC O que você
fez depois desse dia? Não teve medo de continuar com ele?
JSM Tive e por isso comprei uma máquina de choque. Andava com ela
na bolsa. Depois dela ele nunca mais bebeu perto de mim. Não cheguei a precisar
usar a máquina com ele.
MC Você sabe
por que ele te agredia?
JSM Ele dizia que profissionalmente me respeitavam mais do que a
ele. Isso deixava ele irado.
MC Ele
reclamava de ciúmes, por exemplo?
JSM Não tinha isso. O problema era que ele não podia ser
contrariado. Juntava a bebida a isso, e pronto.
MC O que aconteceu
em 2015 para você decidir pôr fim à relação?
JSM Descobri que ele estava havia quase três anos com outra mulher.
E que nesse mesmo tempo, desviava dinheiro da nossa empresa. E, apesar dos episódios
de agressão anteriores, eu não sentia desconfianças ou ciúmes, não era do tipo
que olhava o celular do marido. Sabia a senha e não olhava. Então um dia
mandaram uma mensagem pra mim: “Quer saber a verdade? Olha o celular dele”. E
realmente, quando peguei o celular descobri que me traía. A partir daí, parei
de sorrir. Decidi na hora que me separaria.
MC Como ele
reagiu quando você disse que queria se separar?
JSM Veio pra cima, querendo me bater. E aí pela primeira vez meu
filho, Yago [que na época tinha 20 anos] se meteu, o agarrou e o jogou no chão.
Graças a Deus que meu filho não fez nada com ele. Mas o menino ficou
traumatizado com a cena, porque gostava muito do pai [Chimbinha é pai
de criação de Yago]. Quando vi meu filho naquele estado, eu disse “não,
acabou”. Porque sei o que passei quando criança.
MC Você não teve
medo de pedir a separação?
JSM Não. Meu medo era continuar naquele casamento. E, graças a
esses históricos de agressão, consegui uma medida protetiva, uma distância
mínima de cem metros.
MC Ela continua
valendo?
JSM Durante um ano não aconteceu nada e o juiz disse que não tinha
porquê manter a medida e a retirou. Eu disse: “Olha, não confio”. Entrei com
outro pedido. Estou aguardando agora. A Natalia, minha filha mais velha, também
pediu a medida [a cantora não quis comentar, mas Natalia acusou
Chimbinha de abuso sexual na adolescência e, em entrevistas, declarou que o
guitarrista era violento com a mãe a ponto de ameaçá-la de morte].
MC Você o viu
desde então?
JSM Passado é passado. Não temos contato algum. Isso não é algo que
eu deseje.
MC O que te deu
força para decidir se separar?
JSM Passei a temer pelos meus filhos. Pelas consequências que eles
podiam ter por assistir à violência. Já estava cansada também e a história da
traição foi como a última gota.
Passei a temer pelos
meus filhos. Pelas consequências que eles podiam ter por assistir à violência
MC A separação
profissional aconteceu no mesmo tempo da amorosa?
JSM Foi. Não tinha condições de continuar a parceria musical. Parti
para a carreira solo.
MC Naquela época,
já conhecia a Lei Maria da Penha?
JSM Tinha ouvido falar, a gente escuta né. E depois de passar pelo
que passei, sabia que precisava dela.
MC Como vocês
fazem quando ele vê os filhos?
JSM Meus filhos vão até ele. Tento não me envolver.
MC E sobre
perdão? Mesmo não querendo contato, você o perdoou dentro de você?
JSM Pois é, esse foi o segundo perdão mais difícil da minha vida.
Fiquei três noites em claro, chorando de joelhos, pedindo pra Deus tirar o ódio
de dentro de mim, que era muito forte. Não foi fácil. Não consegui logo. Mas
quando consegui, foi como se tivesse me voltado o ar.
MC Quanto
tempo guardou a violência que sofreu só pra você?
JSM Muitos anos. Na verdade, o tempo todo que ficamos casados. Eu
vim falar só agora. Tinha vergonha demais. Nem ajuda procurei. Só pedia força a
Deus. A verdade é que chegou um ponto em que a violência que vivia me deixou
como um zumbi. Era visível que eu não era mais a mesma.
MC As pessoas
que estavam ao seu redor sabiam que você estava sofrendo?
JSM Claro que sabiam. Teve gente próxima que disse: segue sua vida,
você merece muito mais que isso. Mas eu achava que ele ia melhorar. Achei até o
último dia.
Chegou um ponto em
que a violência que vivia me deixou como um zumbi. Era visível que eu não era
mais a mesma
MC Ele chegou
a tentar algum tratamento para parar de beber? Houve alguma conversa assim?
JSM As conversas eram mais sobre ele beber menos. Mas na época a
gente não pensava em tratamento. E também, teve um bom tempo em que ele ficou
sem beber. Pelo menos perto de mim.
MC Você é
famosa, e ainda trabalhava junto com o seu ex-marido. Por algum momento pensou
duas vezes antes de colocar essa denúncia no mundo?
JSM Demais. Mas acredito que com Deus posso tudo. Posso perdoar,
superar. Posso apagar. E começar tudo de novo. Foi exatamente o que fiz. E
veja, perdoar não é confiar, não é voltar. É tirar essa coisa ruim de dentro de
você.
MC Você tem algum
arrependimento dessa história toda?
JSM Acho que de não ter terminado antes. E de não ter diminuído o
ritmo de trabalho e focado mais na vida pessoal. Ele marcava todos os shows e
eu tinha de ir. E eram muitos shows, quase todo dia. O objetivo dele parecia
mais financeiro do que familiar.
MC O que você
diria para mulheres que passaram ou estão passando por violência
doméstica?
JSM Existe um certo medo, né? Não tem de ter medo. A mulher tem de
falar sobre o assunto. E não pode naturalizar a agressão, não pode aceitar que
é normal. Quando era criança, ia pra casa dos meus vizinhos e via que era
diferente. Não tinha a violência que tinha na minha casa. Tinha é amor. E
percebia que a minha casa era a exceção. A exceção ruim. É a mesma coisa com a
mulher. Ela tem de saber que está vivendo a exceção ruim.
MC O que é
amor para você?
JSM Amor tem de ser simples. Tem de vir de admiração, cumplicidade,
respeito, sem egoísmo, sem maldade.
MC E o tempo?
JSM Ele vai colocando as coisas no lugar, fazendo você eliminar o
que tem de ser eliminado e valorizar o que tem de ser valorizado. Lembra aquela
garotinha passarinho, que subia em árvores? Quero ser ela hoje.